22/03/2024

A entrada do milho em ambientes de reforma de cana-de-açúcar

foto divulgação 
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Lavoura de milho e cana-de-açúcar

O plantio de milho em ambientes de reforma de cana-de-açúcar pode ser uma alternativa para os produtores. Usinas de produção de etanol estão se adaptando para produção de álcool também através do cereal, visando reduzir a ociosidade da indústria na entressafra.

No Brasil, a área cultivada com cana-de-açúcar ultrapassa os 8 milhões de hectares anualmente (Conab, 2023), sendo a maioria na região sudeste. É sabido que após vários cortes, a área de cana necessitará de reforma e implantação de uma nova lavoura para manter um potencial produtivo aceitável. Estima-se que entre 800 a 1,2 milhão de hectares de canaviais sejam reformados anualmente.

Existem várias formas de realizar a reforma dos canaviais, tais como o preparo do solo seguido de um novo plantio de cana ou rotação de culturas como soja, amendoim ou culturas de adubação verde, com as crotalárias, por exemplo.

No sistema de rotação de culturas, as duas maneiras mais comuns de realizar a reforma são: o plantio da cultura subsequente de forma “solteira” ou em um tipo de consórcio chamado Método Inter Ocupacional Simultâneo, Meiosi. Nesta última, nos intervalos entre as linhas “mães da cana”, são cultivadas as culturas de rotação. (imagem 1)


Imagem 1: soja em sistema de Meiosi com cana. Foto: Ronaldo Gonzaga, 2021

O milho é uma cultura que deve ganhar destaque nesse cenário. No Brasil, já existem 20 usinas de produção de etanol que utilizam o milho como matéria-prima, distribuídas em  Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo. Dentro desse grupo, 9 usinas operam exclusivamente com milho, enquanto as 11 restantes se adaptaram para se tornarem usinas “flex”, ou seja, produzem etanol tanto a partir da cana-de-açúcar quanto do milho. Essas usinas “flex” moem cana durante o período de safra e utilizam milho na entressafra da cana, reduzindo a ociosidade na indústria. Diversas outras indústrias estão se adaptando ao sistema “flex”.

Existem vários outros grupos de usinas se preparando para trabalhar com a utilização do milho em suas indústrias.

Uma alternativa pouco difundida e explorada em comparação à Meiosi é o cultivo simultâneo de milho e cana em toda a área. Essa alternativa pode ser considerada um sistema inovador (imagem 2), quando comparada a métodos convencionais empregados na reforma de áreas de cana no Brasil. A cana possui espaçamento maior entre linhas e um desenvolvimento vegetativo inicial significativamente mais lento em comparação ao milho. Diante disso, a estratégia visa a mínima competição entre a cana e a cultura intercalar (milho), para que a produtividade de ambas as culturas seja pouco ou nada afetada. Para alcançar esse objetivo, pode-se recorrer ao uso de herbicidas para atrasar o crescimento inicial da cana-de-açúcar, evitando assim a competição com o milho. Esse sistema possibilita otimizar as operações de plantio tanto da cana quanto do milho, e com o solo preparado favorecer a plantabilidade do milho e o potencial produtivo da cana plantada nos inícios de períodos mais chuvosos (outubro e novembro). Assim, é possível produzir milho durante um período em que as usinas estão menos ativas, sem competir com a moagem da cana e, ainda, escalonar as operações de plantio de cana de fevereiro a abril. Atualmente, este sistema tem pouca adoção devido aos desafios operacionais. No entanto, ao superar esses desafios, essa pode se tornar uma alternativa viável para o agricultor.

Quais são os desafios de produzir milho nas áreas de reforma da cana?

O primeiro grande desafio é a semeadura do milho. A colheita mecanizada da cana-de-açúcar (sem a queima) resulta em uma considerável quantidade de palha depositada na superfície do solo, podendo chegar a até 30 toneladas por hectare. O principal desafio de produzir milho nesses ambientes sem preparo do solo (palha crua) reside na plantabilidade, uma vez que o milho é mais sensível quando comparado à soja e ao amendoim.

O plantio pode ser comprometido por diversas razões, sendo a principal delas a dificuldade de corte da palhada, especialmente quando a cana foi recém-colhida. A palha sempre tem alta relação Carbono/Nitrogênio (C/N), geralmente superior a 60. Nestas situações, há risco de ocorrência de “envelopamento”, onde as sementes ficam presas na palha sem contato com o solo, e muitas vezes nem emergem (imagem 3).

Nesses casos, a velocidade de plantio não consegue ultrapassar com qualidade os 3 km/h. A primeira estratégia utilizada para romper este desafio envolve o uso de semeadoras específicas para essas condições, apresentando chassis mais altos para permitir a vazão da palha; discos de corte maiores (24 - 26 polegadas); uso simultâneo de discos de corte liso e ondulado na mesma semeadora, onde o liso tem maior poder de corte e o ondulado afasta a palha do sulco de semeadura.


Imagem 3: “Envelopamento” de sementes de milho em palhada.

Alguns agricultores, que já cultivam nestes ambientes há vários anos na busca por melhorar a plantabilidade, optam por remover parcial ou até completamente a palha, destinando-a para alimentação animal ou, geralmente, para geração de energia. Com a retirada total ou parcial da palha, é possível aumentar a velocidade de plantio.

Não há uma fórmula única para definir a velocidade ideal de plantio. No entanto, os agricultores podem usar o coeficiente de variação (CV) como um guia confiável, buscando manter o CV mínimo possível e nunca ultrapassando 25% de variação na distribuição das sementes ao longo do sulco de semeadura (gráfico 1).

Outro fator importante está na profundidade de semeadura, em que a prática ideal visa evitar variações superiores a 1,3 cm entre as sementes no sulco (profundidade ideal de semeadura: 4 a 5 centímetros), pois essas variações podem causar desuniformidade no momento da emergência das plântulas de milho (imagem 4).

Estudos recentes indicam redução de 30% a 35% no potencial produtivo individual de uma planta de milho que emerge 1 dia após as demais e, quase 50% de redução quando emerge 2 dias após.


Imagem 4: Variações de profundidade entre sementes na linha maiores que ½ polegada (1,3 cm). Foto: Pioneer Hi-Bred.

O desafio do plantio em áreas sem preparo de solo, com ou sem cobertura de palha, envolve a busca por uma profundidade de semeadura uniforme ao plantar sobre a soqueira da cana. Se o plantio for em soqueira de 1,5 m de espaçamento, é possível fazer plantio do milho na mesma direção, mantendo as linhas de milho paralelas e entre as linhas da soqueira. Essa possibilidade é facilitada pelo uso de GPS de precisão para o plantio de ambas as culturas. Contudo, se o espaçamento da soqueira for de linhas duplas (1,4 m x 0,5 m ou 1,4 m x 0,9 m), torna-se desafiador realizar o plantio do milho na mesma direção da soqueira, pois inevitavelmente haverá linhas de milho sobre a linha da soqueira.

A opção de realizar o plantio em um ângulo de 90 graus em relação à soqueira também é inviável, pois haverá dificuldades para as rodas limitadoras copiarem as ondulações e manterem a profundidade da semente próxima do ideal.

Nesse cenário, a sugestão é que se realize o plantio do milho em um ângulo de 10 a 15 graus em relação à soqueira da linha de cana. Assim, a profundidade das sementes tende a ficar mais uniforme (imagem 5).


Imagem 5: ilustração do ângulo de 10 a 15 graus de plantio do milho em relação à soqueira da linha de cana.


Gráfico 1: Produtividade médica em função do CV no híbrido 30F53VYH. Itacaré-SP, 2018. Fonte: Gonzaga, 2020.

Houve uma grande evolução nos últimos anos com relação aos dosadores de sementes embarcados nas semeadoras ou que podem ser instalados em máquinas mais antigas (Retrofit). Esses dosadores podem dosar sementes de várias peneiras ou até mix de peneiras sem necessidade de troca de discos e sem regulagens de singuladores (imagens 6 e 7). Esse avanço foi fundamental para aprimorar a dosagem de sementes na linha de semeadura, sendo possível obter até 99% de singulação, evitando, inclusive, falhas humanas na regulagem dos singuladores de sementes, conhecidos popularmente como “jacarés” (imagem 8).


Imagem 6: Formatos de sementes de milho e suas respectivas peneiras. Foto: Ronaldo Gonzaga, 2022.


Imagem 7: Dosador V-set® não necessita de regulagem do singulador de semente e utiliza somente um disco para cada cultura.


Imagem 8: Dosadores mais antigos, que dependem de regulagem a cada troca de peneira e lote de sementes. Singuladores conhecidos como “jacarés”. Foto: Ronaldo Gonzaga, 2023.

Outro ponto de atenção nessas áreas é o espaçamento entre linhas do milho. Foi observado que espaçamentos reduzidos de 45-50 cm dificultam a vazão de palhada. E, em condições de palhada mais densa e úmida, ocorre o embuchamento com arraste de palha. Dados de pesquisa indicam que um espaçamento ideal para o milho seria em torno de 65 cm a 70 cm (imagem 9).

Então, por que a grande maioria dos agricultores brasileiros optam por espaçamentos de 45-50 cm? Para otimizar máquinas que plantam outras culturas como soja e feijão. Mas, os agricultores erraram, no passado, ao reduzir de 90 cm para 45 cm - 50 cm? Não, os espaçamentos reduzidos são melhores para o milho em comparação com os utilizados no passado (100 cm ou 90 cm).


Imagem 09: Semeadora adaptada para plantio em reforma de cana com espaçamento de 70 cm entre linhas, visando maior vazão de palha nas áreas de palhada crua. Foto: Rodrigo Matos, 2022.

O segundo grande desafio destas áreas é a adubação nitrogenada

O milho é uma cultura exigente que demanda abundância de nitrogênio (N), quase todo fornecido via adubação mineral. Isso difere da soja, que estabelece uma simbiose com bactérias do gênero Rhizobium para suprir sua demanda - a qual é até maior do que a do milho. Em áreas de palhada crua existe um desafio com a imobilização do N incorporado ao sistema. A decomposição e mineralização dessa palhada, realizadas por microrganismos, resultam no retorno dos nutrientes presentes na palhada para o solo e as plantas. A velocidade desse processo depende principalmente da relação C/N, e da parte bioquímica, teor de lignina, celulose e hemicelulose.

A palhada proveniente da cana-de-açúcar recém-colhida é reconhecida por possuir altas relações C/N, encontrada na literatura variando de 60:1 a 100:1. Essa relação é um fator determinante na taxa de decomposição da palhada no campo.

No milho, em geral, e também nas áreas de reforma, a adubação nitrogenada costuma ser parcialmente realizada no sulco. O restante é aplicado a lanço sobre a palhada, que presente em abundância e com alta relação C/N, promove uma imobilização rápida de boa parte do N aportado pela adubação. 

Os microrganismos presentes no solo utilizam esse N temporariamente para baixar a relação C/N e decompor a palha da cana e outros resíduos presentes no solo. Apesar de temporariamente imobilizado, é importante ressaltar que esse N retorna ao sistema após um período.

No caso do milho, por ser uma cultura de ciclo rápido e ter um pico de absorção entre V4 e V10 chegando a 2/3 do N total absorvido até V10 (dados de marcha de absorção de nutrientes de estudos recentes da Pioneer®), já observamos a campo amarelecimento e deficiência de N nestas áreas devido à imobilização temporária. Pesquisas realizadas por Castro et al.(2021), com N marcado e três níveis de palhada de cana no solo (0%, 50% e 100% da palhada mantida), mostram que o N começa a retornar para o sistema após 90 dias. Outros estudos sugerem, no mínimo, 60 dias, período que fica incompatível para o milho, devido à demanda de N na fase inicial da cultura (gráfico 2).


Gráfico 2: recuperação do N-fertilizante pela planta (RNP) ao longo do ciclo de desenvolvimento da cana-de-açúcar comparando a RNP % nas diferentes porcentagens de palhada depositada sobre o solo. Fonte: adaptado de Castro et al. (2021)

Na tabela 1, é possível observar que mesmo após 300 dias, a relação C/N da palhada permanece elevada, variando de 31 a 82, independentemente do local e da quantidade inicial de material sobre o solo.


Tabela 1: relação C/N em 3 locais e 3 níveis de palhada de cana sobre o solo. Adaptado de: Varanda, 2018.

Apesar dos desafios relacionados à palha, como a dificuldade no plantio e a imobilização de nitrogênio (N), é interessante observar no gráfico 3 que a recuperação do N aportado no sistema atinge seu máximo quando é retirada metade da palhada, a qual inicialmente totalizava 16 toneladas por hectare. Esse dado evidencia que a prática mais indicada seria remover apenas uma parte da palha, buscando melhorar a plantabilidade e aproveitar ao máximo o N aportado no sistema. Dessa forma, é possível manter um ambiente que proteja o solo, preserve a umidade e promova a sanidade da biota presente no solo.


Gráfico 3: recuperação do 15 N-fertilizante no sistema solo-palhada-planta na colheita da segunda soqueira da cana-de-açúcar nas diferentes porcentagens de palhada depositada sobre o solo (16 ton/ha). Fonte: adaptado de Castro et al. (2021).

Alguns agricultores adotam a estratégia de retirar parte da palha das áreas, contribuindo para reduzir a imobilização de N. Uma segunda estratégia é aumentar a dose de N no sulco de semeadura, chegando até 80 kg ha-1, com objetivo de atender a demanda inicial do milho.

Para atender essa dose de 80 kg ha-1 de nitrogênio é necessário utilizar fertilizantes formulados com altas concentrações deste elemento (exemplo: 28-24-00), formulados com ureia e MAP, enquanto o potássio é fornecido em alguns casos pela vinhaça ou por cloreto de potássio aplicado a lanço no pré-plantio.

Entretanto, devido à alta concentração de nitrogênio dessas formulações e ao plantio em períodos chuvosos (de outubro a dezembro), podem ocorrer problemas com higroscopicidade dos fertilizantes, resultando em obstrução das roscas dosadoras e tubos condutores de adubo.

A adubação nitrogenada nem sempre é realizada em condições ambientais favoráveis. Na maioria das vezes, o clima está seco e com altas temperaturas. Nesse caso, o nitrato de amônio se torna uma boa opção, por ser menos suscetível a perdas por volatilização, se comparado à ureia convencional.

Contudo, é crucial que não haja orvalho, pois o nitrato pode causar “queima” das folhas orvalhadas. Outra estratégia é antecipar as coberturas com N, realizadas até V4, atendendo à demanda da cultura na fase inicial e minimizando possíveis déficits causados pela imobilização.

Estudos recentes (2012 até 2020), demonstram que os híbridos modernos do mercado, apresentam um pico de absorção na fase vegetativa, mas existe ainda absorção significativa após o florescimento (média de até 2 kg ha-1/dia contra até 4 kg ha-1/dia na fase vegetativa). Diante disso, o agricultor pode traçar estratégias para fornecer N durante a fase de enchimento de grãos com complementos via foliar ou via sólido, aplicando com autopropelidos. Vale ressaltar que via sólido há necessidade de umidade adequada no solo para solubilização do N e absorção por fluxo de massa. No gráfico 4, é possível observar resposta somente no ambiente de Itapetininga–SP (irrigado) e pouca resposta em Taquarivaí–SP (sequeiro).


Gráfico 4: resposta do milho a doses de N (via uréia) aplicado na fase de VT. Fonte: Ronaldo Gonzaga, 2020.

Para conferir os demais desafios ligados ao plantio consorciado de cana-de-açúcar com milho, CLIQUE AQUI e baixe o artigo completo.

Autores: Ronaldo Luiz Gonzaga, Engenheiro-agrônomo, Doutor em Produção Vegetal pela UNESP e Agrônomo de Produto na Corteva Agriscience. Rodrigo Matos, Representante Comercial Pioneer®. Carlos Ronchi Filho, Representante Comercial Pioneer®.